94 anos
A expressão "se fosses viva, farias..." não faz qualquer sentido porque Tu continuas tão presente na minha vida como nos dias em que esperavas que eu viesse da escola para te procurar os óculos que estacionavam serenos na tua cabeça e me "compravas" essa maravilhosa descoberta com os peixinhos-da-horta e a saladinha de alface que só tu sabes fazer.
Continuas a ser a minha conselheira; aquela com quem partilho os bons e os maus momentos; aquela em quem busco o carinho e o conforto que só quem me viu crescer e, tanta vez, me encobriu as safadezas, sabe dar.
Gabo a paciência que tinhas (e que eu não vou ter) para ver comigo vezes a fio os mesmos filmes (só o Grease chegámos a contar 13 de rajada), para passares 2 horas à mesa para eu comer tudo o que estava no prato, para fazeres as minhas saias exactamente como eu as queria. Sim, se a minha neta quer, finalmente, uma saia tem que sair tal e qual ela quer!
E as sétups que gostavas tanto de beber? E a sopinha de feijão encarnado? O jornal todos os dias?
O teu sorriso até me fazia esquecer as longas secas a apanhar os alfinetes do chão e a enfiar a linha pela ranhura da agulha.
Se há coisa que tenho mesmo muita pena nesta Vida é de não te ter cá em baixo, ao nosso lado, a ver o teu bisneto a crescer. Sei que estás algures no meu Céu e que lhe "embalas o berço" todas as noites mas não te vejo. Só consigo imaginar-te a aconchegar-lhe os lençóis como fizeste comigo.
Tinhas uma mente super aberta, para os dias que viviamos há 20 e tal anos atrás e para uma respeitável senhora de 70 anos. Tão aberta que adoravas o Senhor que cantava:
Fiz dos teus cabelos a minha bandeira
Fiz do teu corpo o meu estandarte
Fiz da tua alma a minha fogueira
E fiz, do teu perfil, as formas de arte
Fiz das tuas lágrimas a despedida
fiz do teu braço a minha anca
dei o teu sentido à minha vida
E o grito deu-o ao nascer de uma criança
Todos nós temos Amália na voz
Dei o teu nome à minha terra
Dei o teu nome à minha arte
A tua vida à primavera
A tua voz à eternidade
Todos nos ...
A tua voz ao meu destino
O teu olhar ao horizonte
dei o teu canto à marcha do meu hino
A tu voz à minha fonte
Todos nos ...
Dei o teu nome à minha terra
Dei o teu nome à minha arte
A tua vida à primavera
A tua voz à eternidade
enquanto meio mundo o criticava pela imagem, pela coragem, pela opção de vida...
E não me vou esquecer que o dinheiro para comprar o meu 1º album dos Xutos veio da tua mão, aos poucos e poucos e foi contigo que o ouvi a 1ª vez. Desse álbum há uma música que tu adoravas ouvir e que só anos mais tarde vim a perceber porquê:
Procurando prazer,
Fizeste vir ao mundo uma filha
Quiseste fazer dela nada
mais que a tua obra prima
Mas ela vai crescer, ela vai
ser o que quiser
Ela vai sair, ela vai ser mulher
Papá, papá
Papá deixa lá
Querida pequenina, tens de
olhar bem para ti
Tens de saber bem aquilo
que queres e partir
Tu podes cair mas tens de
saber levantar-te
Tens de correr perigo tens
de saber aceitar
Papá, papá
Papá deixa lá
Tenho tanto ainda para aprender contigo, Avó!!!